A regulamentação de loterias no Brasil é de responsabilidade do Ministério da Economia, que tem a atribuição legal de autorizar, supervisionar, fiscalizar e regular esses serviços. Além de uma oportunidade individual para melhorar de vida, os sorteios trazem benefícios coletivos, pois, segundo a Constituição, suas receitas reforçam o financiamento da seguridade social.
Enquanto se discute nos meios políticos a legalização dos jogos de azar no Brasil, as loterias oficiais batem recorde. No ano passado, a arrecadação global das loterias administradas pela Caixa Econômica Federal (CEF) cresceu 2,35% em relação a 2019 e chegou ao seu maior nível em toda a história: R$ 17,1 bilhões. Segundo dados da própria CEF, R$ 8,05 bilhões foram repassados para gastos sociais. O valor total dos prêmios distribuídos passou de R$ 5,9 bilhões.
O brasileiro gosta de apostas e sorteios. Além das loterias, há jogos de todo tipo, bingos, investimentos em títulos de capitalização, promoções e concursos que distribuem prêmios. Mas quando as regras do jogo não são claras, ou o jogador se sente frustrado por algo mais do que a simples falta de sorte, o conflito pode resultar em processo e se somar às muitas questões estampadas na jurisprudência sobre loterias do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Falta de clareza
Ao julgar o REsp 1.740.997, a Terceira Turma manteve decisão da Justiça do Ceará que condenou a Liderança Capitalização, responsável pelo título de capitalização Telesena, a pagar o equivalente a R$ 60 mil a um consumidor que comprou um título e, ao raspar o local de premiação instantânea – modalidade conhecida como raspadinha –, encontrou três frases idênticas que afirmavam ser ele o ganhador de um prêmio de R$ 5 mil por mês, durante um ano.
Segundo o apostador, a empresa se negou a lhe pagar o prêmio alegando que o título premiado deveria trazer três valores iguais – como informado no próprio título – e ainda a expressão “ligue 0800…” – conforme previsto nas condições gerais do concurso.
O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que, antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o comum, quando a pessoa pretendia celebrar um contrato, expondo-se à oferta existente no mercado, era procurar, ela mesma, a informação necessária, suficiente e segura a respeito do bem ou serviço que desejava adquirir.
Entretanto, após a edição do CDC, o qual adotou um modelo de transparência nas relações de consumo, passou-se a exigir clareza na informação no período pré-contratual acerca do negócio a ser celebrado.
“Ante a indevida colidência de informações constantes em destaque no título, no sentido de que três valores iguais seriam suficientes para o pagamento do prêmio, e aquelas constantes nas cláusulas gerais, de que seria necessária, além dos três valores iguais, a frase ‘ligue 0800…’, há de prevalecer, sempre, a interpretação mais favorável ao consumidor, na forma do artigo 47 do CDC”, afirmou o relator.
Sanseverino considerou a impressão do título uma verdadeira “pegadinha” para o consumidor e ponderou não ser aceitável que se oficialize a chicana contra aquele que tem sua proteção constitucional reconhecida.
Danos morais coletivos
Em 2016, no REsp 1.438.815, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma decidiu que, embora seja ilícita a exploração de máquinas de jogos eletrônicos, caça-níqueis, bingos e similares, por caracterizar prática contravencional descrita no artigo 50 da Lei de Contravenções Penais, tal atividade, por si só, não gera danos morais coletivos.
A decisão teve origem em ação do Ministério Público Federal (MPF) contra uma associação cultural e esportiva responsável pela organização do sorteio de 16 motos, com cartela a ser adquirida por R$ 15. O MPF sustentou não ser permitida ao particular a exploração de jogos de azar e requereu que a entidade fosse condenada a se abster de tais sorteios, além de pagar danos morais coletivos.
Embora argumentasse que não se tratava de jogo de azar, mas de simples sorteio de prêmios, a associação foi condenada a pagar R$ 15 mil por danos morais coletivos.
Ao proferir seu voto, Nancy Andrighi lembrou que o STJ já se pronunciou em mais de uma oportunidade quanto à ilegalidade da prática de jogos de azar e assemelhados. No entanto, ela observou que, conforme a jurisprudência, o dano moral coletivo “corresponde a uma lesão na esfera extrapatrimonial de uma comunidade, em razão da violação de direito transindividual de ordem coletiva, capaz de causar abalo negativo na moral da coletividade”.
No caso analisado, a relatora entendeu que não houve desgosto ou sofrimento capaz de afetar a dignidade do consumidor e afastou a obrigação de indenizar. “Não é o cometimento de qualquer ilegalidade que é capaz de ensejar dano moral coletivo, mas apenas aquela que, em razão de sua repercussão social, é capaz de provocar profundo abalo negativo na moral de determinada comunidade”, declarou.
Natal premiado
Ao jugar o AgInt no REsp 1.591.336, a Terceira Turma manteve decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que condenou uma associação comercial a indenizar uma participante de promoção de Natal que foi contemplada publicamente com um veículo 0 Km após erro no sorteio e, posteriormente, impedida de resgatar o prêmio.
O relator do processo, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que negar à participante o direito de receber o prêmio, conforme compromisso público assumido inclusive pelo presidente da associação organizadora do sorteio, importaria em “ofensa ao princípio da boa-fé objetiva”.
Segundo os autos, o bilhete da promoção previa que a ordem dos sorteios seria decrescente, iniciando-se pelo 48º prêmio até chegar ao 1º. Seriam sorteados 47 prêmios em dinheiro, no valor de R$ 500, e um carro 0 km. Ocorre que, durante o sorteio, acidentalmente foram sorteados 48 prêmios de R$ 500 mais o veículo, o que fez com que o prêmio principal fosse atribuído à 49º sorteada.
Ao tentar receber o carro, a pessoa anunciada como ganhadora ouviu a alegação de que fora publicada errata com a correção do vencedor, o qual seria o 48ª sorteado, como previsto no bilhete. Ela então ajuizou ação para garantir seu direito ao carro e pediu danos morais.
O TJPR determinou que a associação pagasse à autora da ação o valor do carro e os danos morais. O ministro Sanseverino observou que, segundo os fatos reconhecidos pelas instâncias ordinárias, logo após constatado o equívoco no sorteio, o próprio presidente da associação comercial declarou publicamente que seriam 48 prêmios de 500 e mais o carro, “se comprometendo, em nome da entidade, a contemplar a 49ª pessoa com o veículo”.
Valendo R$ 1 milhão
A Quarta Turma, ao julgar o REsp 788.459, acolheu pedido da BF Utilidades Domésticas Ltda., empresa do Grupo Silvio Santos, para reduzir a indenização concedida pela Justiça da Bahia a uma participante do programa de TV “Show do Milhão” – concurso de perguntas e repostas sobre conhecimentos gerais, com prêmio máximo de R$ 1 milhão em barras de ouro.
Segundo relatado pela participante, ela obteve êxito nas respostas às questões, exceto na última, chamada “pergunta do milhão”, à qual não quis responder para salvaguardar a premiação já acumulada até aquele ponto, de R$ 500 mil. Se desse resposta errada à última questão, perderia todo o valor já ganho.
Porém, ela alegou que a organização agiu de má-fé na elaboração da questão, que não possuía resposta correta, e pleiteou o pagamento de danos morais. Nas instâncias ordinárias, a empresa foi condenada a pagar R$ 500 mil – valor que, somado aos R$ 500 mil recebidos no programa, totalizava o prêmio máximo.
O relator no STJ, ministro Fernando Gonçalves (aposentado), afirmou que, como as instâncias ordinárias concluíram que a participante deixou de responder à última questão em virtude da inviabilidade lógica de uma resposta adequada, era cabível a indenização da chance perdida.
Todavia, ele ressaltou que não seria possível prever que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questão. “Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza – ou a probabilidade objetiva – do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante”, avaliou.
A turma decidiu reduzir a indenização para R$ 125 mil, considerando que esse valor traduziria melhor a oportunidade perdida, pelo fato de a questão possuir quatro alternativas.
Dívida de jogo
No REsp 1.628.974, julgado em 2017, a Terceira Turma decidiu que a cobrança de dívida de jogo contraída em países onde essa atividade é legal pode ser feita por meio de ação ajuizada pelo credor no Brasil.
Ao analisar o caso de uma dívida superior a US$ 1 milhão que teria sido feita por um brasileiro em torneio de pôquer em cassino de Las Vegas, nos Estados Unidos, a turma definiu que a cobrança é juridicamente possível, desde que provado que o jogo é legal no local onde foi praticado.
O relator, Villas Bôas Cueva, explicou que a cobrança só seria impossível caso ofendesse a soberania nacional ou a ordem pública, o que não ficou configurado no caso.
“Não ofende a soberania nacional a cobrança de dívida de jogo, visto que a concessão de validade a negócio jurídico realizado no estrangeiro não retira o poder do Estado em seu território, nem cria nenhuma forma de dependência ou subordinação a outros Estados soberanos”, resumiu o ministro.
Villas Bôas Cueva afirmou ser delicada a análise a respeito de ofensa à ordem pública, alegação que, se fosse aceita, inviabilizaria a cobrança. O relator destacou que diversos tipos de jogos são permitidos no Brasil, como loterias e raspadinhas; assim, é razoável a cobrança relacionada a um jogo regulamentado no local em que os fatos ocorreram.
“Há, portanto, equivalência entre a lei estrangeira e o direito brasileiro, pois ambos permitem determinados jogos de azar, supervisionados pelo Estado, sendo, quanto a esses, admitida a cobrança. Não se vislumbra, assim, resultado incompatível com a ordem pública”, frisou o ministro.
Competência para julgar
No CC 137.509, a Terceira Seção reafirmou o entendimento de que, apesar da competência privativa da União para legislar sobre loterias e sorteios e de seu interesse na persecução penal dos que exploram jogos de azar sem autorização, cabe à Justiça estadual julgar as causas sobre o tema, exceto os crimes contra o sistema financeiro.
A relatoria foi do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, o qual destacou que a competência legislativa e a jurisdicional não se confundem. “A própria Constituição Federal, em seu artigo 109, IV, excluiu da competência da Justiça Federal o julgamento das contravenções penais, ainda que praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União”, afirmou.
No caso analisado, discutiu-se se seria federal ou estadual a competência para julgar causa relacionada à oferta de supostos títulos de capitalização por uma empresa que, valendo-se do CNPJ de outra pessoa jurídica e sem autorização legal, vendia “raspadinhas da sorte” sem lastro para honrar as premiações. Para o juízo federal, a atividade configuraria estelionato, de competência estadual, e não crime contra o sistema financeiro, sujeito à Justiça Federal.
Com base na descrição do esquema de vendas da “raspadinha da sorte”, Reynaldo Soares da Fonseca concluiu que o título, na verdade, representava uma espécie de loteria – tema para a Justiça estadual –, e não título de capitalização – que poderia envolver crime contra o sistema financeiro.
O ministro explicou que, embora o título de capitalização ofereça ao comprador a possibilidade de concorrer a sorteios ao longo do tempo em que o capital fica imobilizado, ao final, mesmo não tendo sido contemplado, o investidor recebe de volta o valor do título, no mínimo, com correção monetária. Já no caso das loterias, o jogador adquire um título que o habilita a concorrer a um prêmio, mas não há promessa de devolução do dinheiro.
Perda de uma chance
Com base na teoria da perda de uma chance, a Quarta Turma, ao julgar os EDcl no AgRg no Ag 1.196.957, condenou um hipermercado a indenizar uma cliente que participou de promoção na qual seriam sorteados 900 vales-compras de R$ 100 e 30 casas. Depois de ser sorteada, a consumidora ficou sabendo que seu prêmio seria apenas o vale-compra, pois o regulamento da promoção previa que as 30 casas fossem sorteadas entre os ganhadores desses vales, mas o segundo sorteio já havia acontecido, sem que ela tivesse sido comunicada.
Alegando que a explicação sobre os dois sorteios sucessivos não constava do bilhete, a cliente entrou na Justiça e pediu que o hipermercado fosse condenado a repetir o sorteio das casas, com sua participação, ou lhe pagar o valor de uma das casas (R$ 40 mil, na época).
O tribunal de segunda instância, no entanto, rejeitou o pedido, entendendo que as regras estavam disponíveis no regulamento da promoção e que a consumidora tinha o dever de verificá-las.
No STJ, a relatora, ministra Isabel Gallotti, destacou que, conforme reconhecido pelo tribunal de origem, o regulamento previa que os 900 ganhadores do primeiro sorteio seriam cientificados do fato pelo hipermercado e receberiam um segundo bilhete para concorrer às 30 casas em novo sorteio – o que não ocorreu em relação à consumidora.
“O panorama de fato descrito no acórdão recorrido conduz à conclusão de que houve dano material, caracterizado pela perda da chance de concorrer, entre 900 participantes, a um dos 30 prêmios em disputa”, afirmou Gallotti. Dessa forma, a relatora, acompanhada pela turma, condenou o hipermercado a pagar 1/30 do valor da casa, com correção desde a época do segundo sorteio.
Prêmio dividido
Em agosto de 2012, a Terceira Turma decidiu pela divisão de quantia superior a 27 milhões, resultante de prêmio da Mega-Sena, entre o dono de uma marcenaria e um ex-empregado. Segundo os autos, o empregado teria dado R$ 1,50 para o jogo e fornecido, com base no seu celular, os números apostados pelo ex-patrão em um “bolão” com apenas os dois participantes.
Duas apostas dividiram o prêmio total de R$ 55 milhões do concurso 898 da Mega-Sena. Uma delas foi a do “bolão” jogado em Joaçaba (SC). No entanto, o patrão, que ficou com o bilhete, teria sacado o dinheiro e se negado a dividi-lo.
O empregado entrou na Justiça, mas o patrão alegou que a aposta foi feita por um palpite próprio – alegação não aceita nas instâncias ordinárias, que determinaram a divisão do prêmio, cabendo mais de R$ 13 milhões para cada um.
No STJ, o relator, ministro Massami Uyeda (aposentado), afirmou que os bilhetes de loteria “são considerados títulos ao portador e, como tal, a obrigação deve ser cumprida a quem apresente o título, liberando-se, assim, o devedor do compromisso assumido”.
Entretanto, Massami Uyeda ponderou que aquele que possui o bilhete não é, necessariamente, o titular do direito ao prêmio, sendo possível haver discussão quanto à propriedade do direito representado pelo título ao portador. “O caráter não nominativo e de literalidade do bilhete de loteria importa, apenas, ao sacado – no caso, a Caixa Econômica Federal, para finalidade específica de resgate do prêmio sorteado”, explicou.
Quanto à divisão do prêmio, o relator manteve o acórdão do tribunal de origem, pois qualquer modificação nesse desfecho exigiria reavaliação das provas, o que não seria possível no julgamento de recursos especiais. “O acórdão recorrido, ao examinar, com profundidade, o conteúdo fático da questão, deu correta interpretação à controvérsia, ao determinar a divisão do prêmio, em partes iguais, aos ora recorrentes”, disse o ministro (processo em segredo de Justiça).