Construções irregulares, danos ambientais e a responsabilização do Estado

​País mundialmente conhecido pela sua riqueza natural e pela variedade de biomas, o Brasil estabeleceu um sistema de direitos, deveres e garantias relacionados ao meio ambiente que está entre os mais avançados do planeta.

Esse sistema nasce na própria Constituição Federal, segundo a qual todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se tanto ao poder público quanto à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as gerações atuais e futuras (artigo 225).

Nesse mesmo sentido, o artigo 23, inciso VI, da Constituição prevê a competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para a proteção do meio ambiente e o combate à poluição em todas as suas formas. O sistema jurídico protetivo se desdobra em inúmeras leis, como a que institui a Política Nacional do Meio Ambiente.

Entretanto, a existência de uma legislação ambiental moderna e robusta não impede que violações sejam cometidas de forma cotidiana. No Brasil, um dos exemplos mais corriqueiros de desrespeito ao meio ambiente é a construção irregular em áreas de proteção, fenômeno de motivações econômicas e sociais que traz, muitas vezes, danos ambientais tão graves quanto irreversíveis.

Em casos como esses, enquanto a responsabilidade do particular pelos danos pode ser identificada com mais clareza, os limites da responsabilização do poder público são motivo de intensas controvérsias, muitas delas decididas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Poder de políc​​​ia

No REsp 1.356.992, a Segunda Turma discutiu a possibilidade de responsabilização do município de Guarulhos (SP) por loteamento clandestino construído irregularmente em área de preservação permanente. Na ação, o município questionava a sua legitimidade para responder ao processo, sob o argumento de que seria do estado a competência para fiscalizar eventuais danos ambientais.

Segundo o ministro Herman Benjamin, entretanto, o município não exerceu o seu poder de polícia de forma efetiva, pois permitiu a ocupação irregular na área e o desmatamento progressivo do local sem a autorização dos órgãos administrativos e ambientais. O relator lembrou que, nos autos, havia a notícia de que a construção irregular dos imóveis ocasionou, além de supressão da vegetação, despejo de resíduos gerados pelas obras, destinação irregular de lixo doméstico e intervenções em nascentes e cursos d’água.

O magistrado ponderou não ser possível colocar o poder público na posição de “segurador universal” diante das lesões sofridas por pessoas ou bens protegidos, nem exigir a onipresença da administração na fiscalização ambiental. Entretanto, ressaltou, esse cenário não afasta a responsabilidade do Estado como um dos garantidores da preservação do meio ambiente.

“Incumbe ao Estado o dever-poder de, eficazmente e de boa-fé, implementar as normas em vigor, atribuição que, no âmbito do meio ambiente, ganha maior relevo diante da dominialidade pública de muitos dos elementos que o compõem e da diversidade dos instrumentos de prevenção, repressão e reparação prescritos pelo legislador”, afirmou o relator.

Com base em precedentes do STJ, Herman Benjamin afirmou que a corresponsabilidade do poder público municipal decorria, no caso dos autos, da omissão em seu dever de controlar e fiscalizar a integridade do meio ambiente ecologicamente equilibrado, na medida em que tal situação contribuiu, direta ou indiretamente, tanto para a degradação ambiental em si quanto para o seu agravamento, a sua consolidação ou perpetuação.

Polo pas​​sivo

A mesma Segunda Turma, ao julgar o REsp 1.826.761, discutiu a responsabilização do município do Rio de Janeiro pela ocorrência de parcelamento irregular do solo para fins residenciais, fato que, segundo o Ministério Público, provocou graves danos ambientais em uma região serrana da cidade.

No recurso, o município sustentou que não deveria compor o polo passivo da ação ao lado dos particulares, já que seria de reponsabilidade dos proprietários do loteamento a obtenção do licenciamento ambiental, cabendo ao poluidor a obrigação de reparar ou indenizar os danos causados.

O ministro Herman Benjamin apontou que, nos danos ambientais, o autor da ação – no caso, o MP – pode demandar contra qualquer um dos envolvidos nos episódios de degradação, inclusive de forma conjunta, não havendo litisconsórcio passivo necessário entre os compradores e os possuidores dos lotes.

Quem permiti​​u?

A suposta ausência de responsabilidade também foi levantada pelo Estado do Paraná no REsp 1.205.171, originado de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público estadual contra a União, o Paraná e o município de Campo Mourão (PR), além dos respectivos órgãos ambientais e de particulares, com o propósito de obter a reparação dos danos ambientais causados por construções nas margens de dois rios da região e do reservatório de uma usina.

De acordo com o relator do recurso na Primeira Turma, ministro Sérgio Kukina, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao reconhecer a existência de responsabilidade objetiva do Estado devido a uma conduta omissiva causadora de dano ambiental, decidiu em consonância com a jurisprudência do STJ sobre o tema.

Entre os precedentes, o relator citou o AREsp 796.146, de relatoria do ministro aposentado Napoleão Nunes Maia Filho, segundo o qual a legitimidade passiva por dano ambiental alcança, imediatamente, aquele que, por ação ou omissão, causou ou permitiu que fosse causado o dano.

Essa responsabilidade, para o ministro Napoleão, deve ser definida “da maneira mais objetiva possível, mediante a simples resposta à pergunta ‘quem causou, quem provocou ou quem permitiu que o dano ocorresse’”.

Execução subsidiári​​a

Em relação ao cumprimento da obrigação de reparar os danos ambientais, no AREsp 1.136.393, a Segunda Turma analisou se seria solidária ou subsidiária a responsabilidade do município de Bragança Paulista (SP), em conjunto com particulares, diante de uma série de medidas determinadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para recuperação de área de preservação, como a demolição de construções inseridas em faixa proibida e a recuperação do terreno degradado.

O ministro Mauro Campbell Marques destacou que, embora o Estado possa ser responsabilizado por omissão no dever de fiscalizar a atividade que causou o dano ambiental, a execução da obrigação de reparação deve ocorrer de forma subsidiária.

Nos termos de manifestação do Ministério Público de São Paulo, o magistrado afirmou que a responsabilidade solidária e a execução subsidiária colocam o ente federativo na condição de “devedor reserva” na sentença, de forma que ele só será acionado na hipótese de o devedor principal não cumprir com a obrigação. Essa condição de subsidiariedade, segundo o MP, impede que o poder público, na condenação, substitua o particular – primeiro causador do dano e, normalmente, aquele que enriquece com a venda dos loteamentos irregulares.

Em sentido semelhante, no REsp 1.326.903, a Segunda Turma manteve a responsabilidade do Distrito Federal pela concessão de alvarás de construção baseados em lei declarada inconstitucional. No recurso, o Distrito Federal defendeu que somente haveria responsabilidade estatal diante de alguma omissão clara que contribuísse, de forma determinante, para a concretização do dano ambiental – o que não seria o caso dos autos.

O ministro Og Fernandes lembrou que o Estado tem o poder-dever de controle e fiscalização ambiental e urbanístico, competência que não se esgota quando o poder público apenas embarga obra erguida em área pública ou encaminha a situação aos órgãos de repressão e controle da ordem, como a polícia e o Ministério Público.

Segundo o ministro, entretanto, somente cabe chamar o ente estatal para cumprir a sentença quando o devedor principal, violador primeiro da proteção ao meio ambiente, estiver absolutamente impedido ou incapaz de quitar a obrigação.

“Essa medida visa impedir que a sociedade arque com o ônus perene da degradação ambiental. Mesmo nessa hipótese, em que o Estado assume a condição de devedor reserva, não se afasta o direito de regresso contra o poluidor, inclusive com recurso à desconsideração da personalidade jurídica”, afirmou o magistrado.

Ainda de acordo com Og Fernandes, a omissão que gera a responsabilidade do Estado não precisa ser, necessariamente, uma conduta diretamente relacionada ao dano.

Competência do ​​Ibama

No REsp 1.397.722, a Segunda Turma analisou a competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para fiscalizar e multar os responsáveis pela construção de um restaurante em região de dunas no município de Aquiraz (CE), definida pela legislação estadual como área de preservação permanente.

Para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, não haveria competência do Ibama – autarquia vinculada à União – no caso, já que a autorização para a construção no local foi emitida pelo Estado do Ceará.

O relator do recurso, ministro Herman Benjamin, observou que, no âmbito administrativo, tanto o Ibama quanto o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) possuem poder de polícia para fiscalizar atividades ilícitas contra o meio ambiente, ainda que o licenciamento ambiental na área seja competência do estado ou do município.

Nos termos da Lei Complementar 140/2011, o ministro destacou a diferença entre a competência administrativa ambiental preventiva (licenciamento) e a competência administrativa ambiental repressiva (fiscalização e punição).

No caso dos autos, Herman Benjamin reforçou que as dunas localizadas ao longo da costa brasileira são consideradas bens da União, pois estão vinculadas a forças naturais associadas ao mar territorial ou aos terrenos de marinha (artigo 20, incisos VI e VII, da Constituição). Além disso, ressaltou, esse tipo de formação natural é protegido pelo Código Florestal como área de preservação.

“Se integrante do domínio público da União, evidente o interesse federal na sua salvaguarda, inclusive com fiscalização e punição de infrações”, afirmou o relator, assinalando que, em tais circunstâncias, será ilegal e nula a licença ou autorização ambiental – estadual ou municipal – concedida “sem explícito, inequívoco e regular beneplácito administrativo do poder público federal”.​

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